Da coalizão à concertação: nova dinâmica da política brasileira | Artigo de Antônio Augusto de Queiroz

O termo “presidencialismo de coalizão”, cunhado por Sérgio Abranches, em 1988, foi durante décadas a chave para entender a relação entre o Executivo e o Legislativo no Brasil. No entanto, o cenário político atual exige revisão desse conceito.
Essa reflexão foi motivada por sugestão do amigo Miguel Gerônimo, mestre profissional em Poder Legislativo, que me propôs o desafio de escrever texto como ponto de partida para discussão sobre a qualificação do presidencialismo no Brasil. Ele destacou que a expressão “presidencialismo de coalizão” fazia todo o sentido no passado, quando o presidente da República detinha controle pleno sobre o Orçamento e as políticas públicas, mas que agora está ultrapassada diante da nova realidade, na qual o Parlamento se empoderou e passou a ter controle sobre parcela relevante do Orçamento.
Com o Congresso assumindo papel mais ativo na definição do Orçamento público e na formulação de políticas públicas, o presidente se vê obrigado a adotar postura mais colaborativa e menos centralizadora. Nesse contexto, propõe-se o termo “presidencialismo de concertação” para descrever essa nova configuração, em a governabilidade depende de processo contínuo de negociação, consenso e pactuação entre os Poderes.
➡️ CARACTERÍSTICA DA COALIZÃO
O “presidencialismo de coalizão” descrevia sistema em que o presidente da República, para governar, precisava formar alianças com partidos no Congresso Nacional, distribuindo cargos e recursos em troca de apoio político. Esse modelo funcionou enquanto o Executivo mantinha relativo controle sobre a agenda legislativa e o Orçamento.
No entanto, nos últimos anos, o Legislativo brasileiro se fortaleceu, tornando-se ator central na definição das políticas públicas e no controle dos recursos financeiros.
Assim, o presidencialismo de concertação surge como evolução desse modelo, refletindo dinâmica mais horizontal e interdependente. Nesse, o presidente não apenas negocia apoio, mas precisa compartilhar decisões estratégicas com o Poder Legislativo, em processo que envolve diálogo, concessões e busca de consenso. A “concertação” remete à ideia de acordo estruturado e contínuo, em que ambos os Poderes têm papéis ativos na governabilidade.
➡️ CARACTERÍSTICAS PRINCIPAIS DA CONCERTAÇÃO
O presidencialismo de concertação pode ser definido por algumas características principais. Primeiramente, há controle compartilhado do Orçamento, com o Congresso assumindo papel central na definição do Orçamento, limitando a autonomia do Executivo.
O presidente precisa negociar com os parlamentares para garantir a aprovação das prioridades, o que muitas vezes resulta em concessões e ajustes. Segundo, a agenda legislativa passa a ser colaborativa, com a formulação de políticas públicas sendo esforço conjunto.
Projetos de lei importantes são discutidos e modificados em comissões no Parlamento, com participação ativa de deputados e senadores. Em terceiro lugar, a negociação é contínua, diferentemente do modelo anterior, em que as negociações ocorriam pontualmente.
No presidencialismo de concertação, o diálogo é constante, e o presidente precisa manter relação próxima com líderes partidários e comissões do Parlamento para garantir a governabilidade. Além disso, há o fortalecimento do Legislativo, que se torna ator mais autônomo e influente, com capacidade de vetar ou modificar propostas do Executivo. Isso exige que o presidente adote postura mais colaborativa e menos impositiva.
➡️ DINÂMICA DO PRESIDENCIALISMO DE CONCERTAÇÃO
Nos últimos anos, diversos episódios ilustram a dinâmica do presidencialismo de concertação. Exemplo é a PEC da Transição (2022), em o presidente Lula precisou negociar com o Congresso a aprovação de medida que ampliou o teto de gastos para viabilizar políticas sociais. O texto final foi resultado de intensas negociações e concessões ao Legislativo.
Outro exemplo é a Reforma Tributária (2023), que foi amplamente discutida e modificada no Congresso, com deputados e senadores, que desempenharam papel central na definição dos detalhes. O Executivo atuou mais como facilitador do que como protagonista.
Além disso, o Congresso tem ampliado a influência sobre o Orçamento federal, com emendas parlamentares ganhando cada vez mais peso. Por conseguinte, o presidente precisa negociar com os parlamentares para garantir a aprovação das prioridades, muitas vezes cedendo espaço para demandas regionais e setoriais.
➡️ TRANSFORMAÇÕES PROFUNDAS
A adoção do termo “presidencialismo de concertação” não é apenas mudança semântica, mas reflete transformações profundas no sistema político brasileiro. Entre as implicações desse novo modelo, destacam-se a possibilidade de maior estabilidade política, ao envolver o Congresso de forma mais ativa na governabilidade, reduzindo conflitos e crises institucionais.
No entanto, há também o risco de paralisia decisória, já que a necessidade de consenso pode tornar o processo decisório mais lento e burocrático, especialmente em Congresso fragmentado como o brasileiro.
Outra implicação é a ampliação da representatividade, ao dar mais voz ao Legislativo, o que pode incluir demandas regionais e setoriais, mas também favorecer o clientelismo e o fisiologismo. Por fim, há redução do papel do Poder Executivo, com o presidente perdendo parte da autonomia e capacidade de implementar políticas de forma ágil, precisando constantemente negociar com o Congresso.
Aliás, o gesto do presidente Lula de comunicar previamente aos presidentes da Câmara e do Senado a escolha da deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR) para a SRI (Secretaria de Relações Institucionais) reflete prática comum no presidencialismo de concertação.
Esse tipo de ação demonstra respeito ao Parlamento e busca evitar atritos desnecessários, fortalecendo a relação entre os Poderes Executivo e Legislativo, afinal a SRI exerce papel central nesse contexto, pois é responsável por mediar o diálogo entre o governo e o Congresso, facilitando a articulação política e a construção de consensos.
APARÊNCIA E ESSÊNCIA
Deve-se reconhecer, também, que sustentar a tese do presidencialismo de concertação em substituição ao presidencialismo de coalizão não é tarefa fácil, pois aparentemente o diagnóstico corrente parece contrariá-la. A polarização política cria a imagem de Executivo frágil, desarticulado e sem base de apoio, com inúmeras MP (medidas provisórias) caducando sem serem votadas ou ignoradas pelo Congresso.
No entanto, essa visão desconsidera cenário mais amplo, em que muitas MP foram incorporadas em outras proposições ou cumpriram seus objetivos antes de caducar. Apesar das dificuldades, nenhum tema relevante para o governo deixou de ser aprovado, ainda que com concessões.
DOMINÂNCIA DO CENTRÃO
Desde os governos Bolsonaro e Temer, marcados pela dominância do Centrão, a percepção de fragilidade persiste, agravada pelo recorde de vetos presidenciais derrubados pelo Legislativo.
Além disso, o governo enfrenta desafios inéditos para combater a mistificação e a desinformação, que distorcem a percepção pública sobre suas ações, enquanto programas como a Voz do Brasil parecem dominados pela oposição, reforçando a narrativa de Executivo incapaz de se comunicar efetivamente.
Essa aparente desordem sugere cenário caótico, no qual o “baixo clero” do Congresso parlamentares com poder de barganha, mas sem expressão nacional impõe agendas particulares, ameaçando a coesão de projeto nacional.
No entanto, essa aparente desordem reflete sistema político fragmentado e polarizado, em que a construção de consensos exige habilidade negociadora e disposição para enfrentar desafios estruturais, que efetivamente estão presentes, porém nem sempre perceptíveis ao senso comum.
✅ CAPACIDADE DE CONDUZIR O PROCESSO
O ponto central é que, apesar de as dificuldades decorrentes do empoderamento do Legislativo, o Executivo tem conseguido, por meio de diálogo e negociação, aprovar sua agenda, demonstrando capacidade de conduzir o processo político e garantir a implementação de suas prioridades, mesmo em cenário de extrema complexidade e resistência.
Por todas essas razões, o termo “presidencialismo de concertação” é o que melhor captura a essência da nova dinâmica política brasileira, em que o Executivo e o Legislativo atuam de forma mais interdependente e colaborativa, mesmo disputando o conteúdo da política pública.
Enquanto o “presidencialismo de coalizão” descrevia sistema centrado no presidente, o novo modelo reflete realidade em que o Congresso é ator central e indispensável para a governabilidade. A adoção dessa nova terminologia não apenas atualiza o debate, mas também oferece lente mais precisa para entender os desafios e oportunidades do sistema político brasileiro contemporâneo.
Em cenário de crescente complexidade e fragmentação, o presidencialismo de concertação pode ser a chave para governabilidade mais estável e inclusiva, isolando o extremismo.
Antônio Augusto de Queiroz é Jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. É sócio-diretor da empresa “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais”, foi diretor de Documentação do Diap, é membro da Câmara Técnica de Transformação do Estado e do Cdess da Presidência da República.